A Construção da Irrealidade Imagética
Introdução
Durante nosso desenvolvimento como seres humanos, seguimos um padrão previsível de rotina. Desde o nosso nascimento, somos programados naturalmente para nos ajustarmos ao mundo da maneira que faz mais sentido para nós. Desde cedo, momentos se tornam lições de vida em cada um de nós, minha mãe viveu isso e sua avó também, meu pai e seu irmão. As situações se repetem em nossas vidas conforme necessário para que possamos aprender e evoluir diante delas, embora cada momento seja único, já experimentamos situações semelhantes e ainda iremos.
Com cerca de 18 meses, uma criança geralmente aprende a andar, desenvolvendo a habilidade motora para explorar o mundo ao seu redor. A capacidade de falar normalmente se desenvolve por volta dos 3 anos, a partir da qual a criança começa a explorar sua criatividade. Ao longo da vida, essa criatividade se desenvolve e se molda junto com sua personalidade, à medida que ela se adapta ao ambiente ao seu redor. Embora essas etapas sejam semelhantes para todos, cada pessoa é singular e única em sua jornada de crescimento e desenvolvimento.
Se entregar ao mundo irreal é se entregar ao mundo ainda não vivido e não explorado, um mundo que nunca se tornará real além daquilo que se é visto. Muitas vezes, só o próprio sonhador pode visualizar suas ideias irreais, é extremamente difícil termos interpretações iguais neste tema, pois não se trata sobre realidade. E como artista, mergulho profundamente no meu próprio inconsciente e consciente para trazer desde sonhos a figuras de linguagem ao mundo físico. Não é algo simples, há muito sobre a conexão com o escapismo, necessidade que temos de fugir da realidade convencional.
Durante meu desenvolvimento como ser humano, desde a infância, quando moldava minha personalidade, essa vontade de sair do comum sempre me veio à mente, junto da vontade de impactar, buscando não apenas mexer com as emoções, mas também as reflexões racionais. A reprodução de algumas das minhas criações podem ser vistas como uma forma de provocação, já que muitas vezes têm uma definição “caótica” e sem sentido, algo que eu particularmente adoro, de modo geral, digamos que gosto de acessar áreas cognitivas que muito se fala mas pouco se pensa.
A Construção da Irrealidade Imagética
Desde que adentrei ao universo onírico pessoal tenho representado ideias tão distantes da realidade mas que parecem tão reais ao olhar, é como encontrar possibilidades de observar o que está dentro do “impossível” e isso me fascina. Existe uma dualidade na questão lógica e ilógica na construção das minhas obras, que se contradizem em instantes. O estranhamento e a surpresa, frequentemente acompanhados de risos, são reações iniciais comuns diante das obras. No entanto, essa primeira impressão logo dá lugar a reflexões e maneiras de se encontrar uma razão ou compreendimento daquilo. A série “Manifestações de Shreks”, criada em 2022, exemplifica parte dessa reação.

“Manifestação de 59 Shreks em Salvador, 2023

“Manifestação de 108 Shreks no Cristo Redentor, 2022
Com a considerável influência nos meios de comunicação contemporânea, na geração que faz uso abundante de gírias e ditos populares, percebo que exploramos pouco os significados subjacentes das expressões que usamos no dia a dia, e por esse motivo, represento muitas vezes temas da arte popular em minhas obras, alcançando um amplo público de uma determinada geração. Embora minha linguagem seja inspirada nos conceitos do surrealismo, algo que não podemos ver e viver no dia a dia, não me faço exclusivo apenas na descontextualização aleatória de imagens que meu inconsciente cria, é também uma junção de criações dos sonhos conscientes e de diversas formas de comunicação que são desfragmentadas, montadas e unificadas em um suporte só.
Costumo construir imagens invertendo o contexto de um acontecimento pessoal ou de um dito popular, usando diversas figuras de linguagem como pleonasmo, metáforas e ironias, transformando-as em imagens. Mesmo invertendo a lógica na construção da imagem, busco preservar o significado principal se tornando algo que num primeiro momento se abstém de lógica, mas ao refletir a fundo, se torna compreensível.
Nosso cotidiano é programado ao previsível na rotina. Ir à padaria, ir ao banco, são momentos que imaginamos o roteiro, porque geralmente tudo que fazemos é considerado natural e habitual. Durante essa rotina, é incomum imaginarmos elementos irreais ou fantásticos que possam ocorrer ao longo do percurso. No entanto, o estado que chamo de “sonhos conscientes” que ocorre durante a vigília, pode ser comparado à experiência das coincidências. Nesse plano de imaginação consciente, somos capazes de conceber uma ampla gama de possibilidades, mas, em geral, a tendência mais comum é imaginarmos o inesperado que poderia ocorrer na rotina, dentro da realidade, seriam as situações improváveis.
É desafiador mentalizar naturalmente e com frequência uma coincidência ou situação improvável com elementos irreais, como se estivéssemos sonhando acordados. Posso exemplificar da seguinte maneira, ao viajar para um país distante, por exemplo, podemos momentaneamente imaginar a improbabilidade de encontrar alguém que não tenha viajado conosco. Dentro dos limites da realidade, isto seria a coincidência e improbabilidade que imaginamos. E se viajássemos para esse mesmo país distante e exercitarmos nossa mente a introduzir elementos irreais, poderíamos criar um universo ilimitado. Como exemplo, o filme que se tornou cómico pela sua irrealidade não convencional, Sharknado. No filme tubarões são vistos no céu pela janela de um avião. No entanto, nossa consciência não tem a prática automática de imaginar situações como essa. Porém, se tivéssemos tal capacidade com naturalidade, poderíamos viver em uma sociedade que temeria ameaças irreais por onde quer que fosse, e por outro lado, teríamos uma produção criativa abundante, derivada da imaginação das pessoas. A dificuldade em incorporar naturalmente a irrealidade no estado de sonho consciente destaca a fronteira entre o onírico e o real.
Na nossa sociedade, somos muitas vezes desencorajados a trabalhar nossa mente em âmbitos fora da realidade que vivemos. Maquinamos nossa mente para atender as expectativas da realidade do que as surpresas do improvável, seja quais forem. E muitas vezes o escapismo na rotina e relaxamento se definem em realidades na verdade.
A distorção da lógica, ditos populares e das figuras de linguagem pode ser notada em obras como “Desafiar a Gravidade” com ligação direta ao musical Wicked, a ideia foi desenvolvida a partir da narrativa da peça, em que a protagonista realiza sua performance sua performance voando em uma vassoura. Procurei desfragmentar a frase desse contexto me fazendo pensar o que seria impossível ao ponto de desafiar a gravidade. Na obra “Golden Hour”, que se refere a um dito popular muito comum sobre o período do dia em que o céu predomina alaranjado brilhante conhecido como “hora dourada”, fiz a ligação com a raça de cachorros, Golden Retriever, conhecidos pelo temperamento divertido. Na criação, compus esse entardecer unido com diversos cachorros, simbolizando o momento dos “Goldens Retrievers”.

“Desafiar a Gravidade” 2023

“Golden Hour” 2023
O Onírico, a Psicanálise e o Surrealismo
Todos nós já sonhamos um dia com super poderes, como o de voar. No entanto, o leque de sonhos que temos em comum vai se afunilando quando esses sonhos se tornam mais e mais irreais e individuais. Quando sonhamos com algo longe da realidade podemos nos enxergar nesse mundo irreal que nosso inconsciente cria. Vivendo naquele sonho, a mente consegue imaginar a possibilidade de experimentar tudo o que acontece ali, mas apenas dentro desse escapismo que se encerra ao despertarmos, deixando apenas lembranças de fragmentos e flashes. A arte tem o poder de eternizar essa imagética, é como eternizar o impossível.
Na antiguidade, os egípcios tinham uma forte ligação com os sonhos e realizavam pesquisas para decifrar seus mistérios, acreditando que se tratava de mensagens ou advertências enviadas pelos deuses. Os primeiros registros revelam placas de argila da antiga Mesopotâmia que continham uma espécie de guia de interpretação de sonhos. Em 150 d.C., foi escrita a *Oneirocrítica*, uma coleção de livros que documentava e catalogava mais de 3000 sonhos da população. Concluiu-se que os sonhos e sua simbologia tinham significados particulares, mas o pensamento da época buscava uma explicação universal para o fenômeno.
Na França, na década de 1920, surgiu o surrealismo, o primeiro movimento a explorar profundamente o universo onírico. Os surrealistas estavam particularmente interessados em construir imagens formadas pelo inconsciente, criando cenas que ultrapassavam a realidade. Influenciados pela psicanálise de Freud, que destacava a importância do inconsciente na criatividade humana, os surrealistas buscavam se libertar do racionalismo e permitir a fluidez da imaginação, do ilógico e dos simbolismos presentes nos sonhos.
Marcando o início do movimento, André Breton, escreveu o Manifesto Surrealista em 1924, criou o termo para definir essa junção dos sonhos e da realidade, definindo assim como: surrealidade. O pintor frânces, Henri Rousseaus, foi pioneiro no movimento surrealista com “A Cigana Adormecida”, de 1897. Na imagem, temos essa mulher repousando sem se importar com a ameaça do leão, tendo ao fundo, uma paisagem serena em azul que simboliza esse estado de sonho.

Exercitando nossa mente, conseguimos trazer à tona memórias afetivas, mas muitas vezes essas memórias são irrepresentáveis. No entanto, será que é possível reproduzir uma imagem de uma memória que só existe em nossa cabeça? E um sonho? Se pudéssemos fotografar nossos sonhos e pendurá-los na parede, seria como trazer essa irrealidade para o nosso mundo real, criando um portal para revivermos um pouco daquela irrealidade sempre que quisermos. Isso se tornaria nosso escapismo pessoal. O mais curioso é que temos o costume de querer interpretar e entender o significado de um sonho, tentando colocá-lo mais presente na realidade. Ao fazer isso, desmistificamos a intenção do nosso cérebro ao nos mostrar essas figuras. Será que realmente são mensagens do nosso inconsciente para o consciente?
Na psicologia dos sonhos, há diversos estudos sobre o fenômeno onírico. Alguns sugerem que, ao despertar, nosso cérebro tenta resolver problemas que não conseguimos enfrentar no inconsciente. Na análise cognitiva, os sonhos revelam aspectos da vida desperta do sonhador, e outros estudos indicam que eles ajudam o indivíduo a reconhecer o sentido de sua existência, demonstrando como a pessoa se relaciona com o mundo, funcionando como uma extensão da vigília. Acredito que, por mais que haja tantas pesquisas sobre a real razão e função dos sonhos, ele se torna um estado único que nossa mente tem a capacidade de reproduzir a irrealidade, tendo significados singulares para cada sonhador. Seja com um cenário distorcido, pessoas que faleceram ou percepção diante de um problema em vigília, o que seria de nossas mentes se não houvessem possibilidades de sonhar, que tipo de irrealidade viveriamos? será que seria apenas possível termos momentos de coincidência e improbalidade como introduzi no capítulo anterior? Interpretações de experiências de vida despertas seriam suficientes para e esclarecer e refletirmos o que nos aflige? Será que ainda teríamos capacidade tão potente de imaginação em vigília?
Voltando para a parte onde nosso cérebro trabalha dentro do consciente, o que seria menos provável de alguém imaginar ou sonhar e o que ainda não imaginamos? As possibilidades são infinitas e há uma gama muito maior de imagens que ainda nunca tivemos a oportunidade de sonhar ou de fato contemplar. Podemos ter ainda muitas imagens significantes em diversas formas de expressão e sabendo-se sobre arteterapia e a maneira como não há de fato uma regra além do sentir e reproduzir, a escolha e maneira de quem a reproduz poderá trazer vida a esses sonhos e memórias se assim fizer sentido para tal.
Conclusão
É sempre gratificante explorar a fundo os temas que nos fascinam e sempre tive um grande interesse pelos amplitude da imaginação humana e o que podemos criar com ela. Com a chegada da inteligência artificial e a rapidez de sua tecnologia, temo que artistas possam se perder em seu momento de processo criativo e pessoal se não usada com cautela. Embora a IA ofereça soluções práticas, o processo artístico, seja teórico, prático ou criativo, é importante para nosso desenvolvimento . Vivenciar esse momento de criação pode abrir novas possibilidades, tanto no tema pesquisado quanto em outras áreas que talvez não exploraríamos com soluções tecnologicas imediatas. Há riqueza na imaginação humana, e a criatividade floresce nas descobertas feitas ao longo do caminho, pessoal e artístico.
Na tragetória que sigo artisticamente, a construção desse mundo da irrealidade imagética, o escapismo, as figuras de linguagem representadas em imagens, a idéia de preservar sonhos, são temas que ilustram parte de mim. Na prática, vou pintando para que possam entender e experenciar, ao menos um pouco, tudo o que eu vejo, sinto e crio.
Referências Bibliográficas
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